“Todos os problemas podem ser resolvidos com tecnologia.”
O quão acertada (ou não) parece essa afirmação? Enquanto escrevia este artigo, meu editor eletrônico de texto apontou que as três primeiras palavras dessa frase estavam incorretas, e me sugeriu trocar por “A quão acertada”. Ele se engana, a frase está correta.
Esses deslizes acontecem todos os dias, mas costumamos relevar os erros da tecnologia. Ignoramos quando procuramos algo e o resultado não tem nada a ver com o que desejamos. Ou quando estamos indo de um ponto a outro da cidade e o GPS nos guia por uma opção de trajeto sem semáforos, mas que desconsidera o trânsito daquele horário e os cruzamentos daquele caminho, alongando assim nossa viagem.
Sabemos que a tecnologia está longe da perfeição, mas continuamos acreditando que ela é capaz de resolver todos os nossos problemas. O mesmo vale para cidades inteligentes. Atualmente existe a crença de que todas as cidades deveriam se tornar “inteligentes”. Os cidadãos do século XXI esperam que seus gestores se modernizem, empreguem sensores, câmeras e medidores de todos os tipos, acreditando que, uma vez implantadas essas tecnologias e substituídos os burocratas tradicionais por jovens que trabalham de tênis e moletons em seus computadores cheios de adesivos, os problemas serão magicamente resolvidos sem altos investimentos.
É fato que antigos problemas urbanos são cada vez mais resolvidos com tecnologias disruptivas. É de conhecimento dos aficionados por tecnologia as possibilidades que elas criam, tal como a implantação de um sistema de transporte eficiente sem investimento estatal ou de inclusão digital e facilitação de comunicação do público com os órgãos públicos, como é o caso dos totens inteligentes que a cidade de Nova York está colocando no lugar das antigas cabines telefônicas.
Porém, quando focamos demais nessas discussões (que são empolgantes e divertidas), deixamos de tratar de questões que podem ser mais importantes no âmbito do planejamento urbano. Para ilustrar esse paradoxo vou usar um exemplo que aconteceu na cidade onde passei a maior parte da minha vida. Há 3 anos, a Prefeitura de Porto Alegre anunciou com pompa e circunstância que estava implantando a tecnologia de reconhecimento facial em seus ônibus. O cidadão mais deslumbrado deve ter ficado extasiado: “Porto Alegre implantando tecnologia de ponta em seus ônibus!”. Realmente, o reconhecimento facial é uma novidade muito recente; tão nova que é defeituosa.
Contudo, independente da tecnologia ser perfeita ou não, a pergunta que deveríamos fazer é: ao implementá-la, qual o ganho à cidade e à população? O que é possível fazer agora que antes não era? Pense em uma câmera de reconhecimento facial dentro de um ônibus e tente responder essas perguntas.
A alegação da prefeitura era a de que essa tecnologia ajudaria a combater fraudes, o que pode ser verdade. Mas o que a população ganha com isso? Nada, a população não ganhou nada, logo é difícil mensurar o que a cidade ganhou. O quão inteligente ficou Porto Alegre depois que seus ônibus passaram a reconhecer rostos?
Durante anos trabalhei como consultor de negócios com foco em tecnologia. Uma frase que eu dizia constantemente aos meus clientes em implantações de novos sistemas era: “Projetos de tecnologia não são projetos de tecnologia, são projetos de negócio”. O que eu queria dizer com isso era que não adiantava gastar milhões na compra de um sistema se os processos e pessoas que interagiriam com ele não estivessem preparados.
O mesmo vale para a aplicação da tecnologia em cidades, num esforço de transformá-las em inteligentes. A tecnologia não deve ser o fim, apenas uma ferramenta usada para atacar o problema urbano. Esse deve ser o foco e acredito que esta discussão hoje está se perdendo em sensores e monitores de televisão espalhados pela cidade, da mesma forma que empresas gastaram e continuam gastando milhões de dólares em implantações de sistemas para resolver problemas que não são dos sistemas informatizados, mas dos processos e das pessoas.
Quando pensamos na realidade brasileira, essa discrepância entre o retorno que a tecnologia oferece e o que a população realmente necessita fica ainda maior. As cidades brasileiras sofrem com muitos problemas, passando por dificuldades que podem ser resolvidas com melhor legislação. Por exemplo, reduzir as restrições para construção de moradias em locais centrais, que expulsam as pessoas mais pobres para longe dos centros urbanos, sobrecarregando e encarecendo a manutenção da infraestrutura da cidade. Elas sofrem também com problemas de saneamento básico, mobilidade, inclusão social, entre outros.
Além disso, soluções tidas como “inteligentes” às vezes se mostram como novos problemas. O que nos leva a refletir sobre qual deve ser o nosso foco ao pensar em resolver os nossos desafios. Seria almejar ser a cidade com maior número de telas e conexões para carregar celular nas paradas de ônibus, enquanto o sistema de transporte público é decrépito e ineficiente? Ou de repente faz mais sentido priorizar seus cidadãos (como usuários de um serviço) e como criar uma cidade que melhore suas vidas? Se a solução passar por telas de LCD e carregadores de celular nas paradas de ônibus, ótimo!
Cidade inteligente invisível
Finalmente, gostaria de falar sobre os benefícios da “cidade inteligente invisível”. Entendo que as tecnologias de “cidade inteligente” se dividem entre as visíveis — como telas, máquinas e outros equipamentos aparentes — e as tecnologias invisíveis — como é o caso da aplicação de técnicas de ciência de dados na resolução de problemas urbanos.
Vejo essa linha de soluções com um grande potencial nesse campo, porém ela não é tão celebrada quanto a tecnologia visível. A cidade de Nova York tem sido referência nessa área em função dos esforços do ex-prefeito Michael Bloomberg (2002 a 2013). Bloomberg, além de político, é um magnata que enriqueceu com a sua empresa especializada em análise de dados financeiros, então não é de se estranhar que ele tenha tido a epifania de resolver problemas urbanos com análise de informações.
Um exemplo prático do uso da ciência de dados para resolver problemas urbanos aconteceu em 2015, quando o departamento de análise de dados da cidade foi chamado para ajudar no combate à proliferação de bactérias em sistemas de resfriamento de prédios — problema que vinha causando fatalidades. O departamento desenvolveu então um sistema que conseguia prever quais prédios tinham mais chances de ter um sistema de refrigeração com depósito de água, que era o local onde essas bactérias se desenvolviam. Parece algo simples, mas para uma cidade com mais de 1 milhão de prédios, saber exatamente quais deles devem ser inspecionados é um desafio bem complexo.
A cidade não possuía uma lista de quais edifícios tinham esse sistema, e contava com um número limitado de inspetores, cuja missão era visitar esses prédios e testar a água para poder identificar quais deles deveriam receber o tratamento para matar a bactéria. Com a ajuda do sistema, a cidade conseguiu identificá-los e combater a crise com maior rapidez.
Sistemas como esse podem ser aplicados para otimizar a alocação dos recursos públicos, ou para encontrar a solução de um problema específico. A crença de que a tecnologia pode resolver tudo tem um nome, se chama “technochauvinism”. Esse termo foi cunhado pela data jornalista e professora da NYU Meredith Broussard em seu livro “Artificial Unintelligence: How Computers Misunderstand the World” (sem tradução para o português). Nele Meredith explica as limitações da tecnologia atual, principalmente nas relacionadas ao campo da inteligência artificial, onde ainda é generalizada a confusão entre ficção científica e realidade.
Computadores podem analisar uma foto e identificar se uma mancha parece com um câncer ou não, outros podem guiar carros. Isso não quer dizer que um computador possa fazer ambos. Ou seja, computadores e sistemas tecnológicos em geral podem resolver problemas específicos, mas não são a solução para todos eles. E essas soluções somente funcionam e resolvem problemas quando são concebidas e supervisionadas por especialistas que entendem o problema e sabem qual a sua solução, aplicando a tecnologia como ferramenta.
As cidades somente serão inteligentes quando geridas por quem entende a complexidade de seu funcionamento e conhece os caminhos para solucionar seus problemas — podendo, ou não, envolver telas e sensores por todos os lados.
Via Caos Planejado.